O Chalé da Rua do Carmo - o casarão do "Deguste"

por ângelo Oswaldo de  Araujo Santos

O estilo "chalé" (do francês chalet, a palavra tem origem suíça – cala: abrigo - e foi difundida pelo escritor Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII) aparece na arquitetura de Ouro Preto por volta de 1880. Os engenheiros da Estrada de Ferro Dom Pedro II, que sobe resolutamente as montanhas de Minas rumo à capital da Província, estimulam a moda. O imperador inaugura, em 1881, o ramal que a iniciativa privada leva de Barbacena a São João Del Rei, através da estrada de Ferro Oeste de Minas. A inauguração do ramal de Ouro Preto, deixando a linha tronco em Miguel Burnier, só acontece às vésperas da República, em agosto de 1889, com a presença de Pedro II, da imperatriz Teresa Cristina e da princesa Isabel. Enquanto isso, multiplicam-se os chalés, em Ouro Preto e nas cidades servidas pela linha férrea.

As duas grandes águas do telhado terminam em largos beirais, como se avarandados fossem. O caibro corrido vem pôr fim ao achinesado galbo de contrafeito dos telhados antigos. Os beirais são sustentados por mãos francesas de madeira, elegantemente trabalhadas. Lambrequins arrematam o beiral, como renda branca de fino favor. As janelas abandonam tanto a verga curva lisboeta, cultivada desde a segunda metade do século XVIII, quanto a verga reta estabelecida pelo padrão neoclássico do século XIX. Adotam a ogiva ou o triângulo, com bandeira de vidros coloridos sobre a caixilharia em branco de vidro transparente. Folhas em veneziana ou em calha completam a janela, abrindo sempre para fora, com os indefectíveis mancebos de ferro, popularmente ditos carrancas, usados para prende-las. Há balcões, varandas e alpendres, com guarda-corpo e elementos variados trabalhados em ferro.

 A ogiva é moda da época, reflexo do acento medievalista preponderante nas linhas do ecletismo então florescente. As pesquisas do arquiteto e restaurador francês Violet-le-Duc e a reconstrução do Parlamento britânico consagram o neogótico. A capela do Colégio Caraça (cerca de 1870), a igreja de Santa Isabel da Hungria, em Caxambu, e o castelinho da Ilha Fiscal, no Rio de Janeiro, são testemunhos do neogótico no Brasil. Os chalés quase sempre trazem janelas e portas em ogiva. Caem no gosto do tempo por serem vistosos, confortáveis e higiênicos, geralmente soltos no terreno, exatamente ao contrário do casario geminado da tradição colonial. Em Portugal, os chalés aparecem no final do século XIX e são chamados de "casa de brasileiro", por serem geralmente erguidos por portugueses que voltam endinheirados do Brasil e podem assim edificar segundo a última moda.

Em Ouro Preto, destacam-se o chalé na encosta do vale do córrego do Sobreira, no bairro de Antônio Dias, que pertenceu ao pintor Carlos Scliar; o grande chalé no alto da rua das Lajes; o chalé no beco do Pilão, a cavaleiro da rua dos Paulistas; a casa do antigo tabelião Dirceu de Brito, nas Dores; a casa do comendador José Pedro Xavier da Veiga, na rua que hoje leva seu nome, na qual se vê, a montante, o chalé da família do maestro Geraldo Murta. Num formoso chalé entre a praia do Circo e a Matriz do Pilar, foi criada primeira Faculdade de Direito de Minas, em 1891, pelo presidente Afonso Pena. O chalé da Ponte do Rosário foi erguido pelo engenheiro Henrique Dumont, pai do inventor Alberto Santos Dumont, cujo avô materno, coronel Santos, deixou belo chalé na rua da Bela Vista, também no Rosário. Logo atrás da igreja, está o chalé em que residiu a musicista Zizinha Cruz. No alto das Cabeças, o de Nelson Garcia é excelente exemplar. Um dos maiores está na rua Getúlio Vargas, adiante do largo da Alegria, propriedade da família Laia. O Almanack de Ouro Preto para o ano de 1890 traz, na página 240, interessante anúncio que muito esclarece sobre a construção dos chalés na capital mineira. Diz a publicidade: "Grande Marcenaria. Escultura em ornatos, carpintaria, etc. proprietário desta oficina, já bastante conhecido por seus trabalhos, entre os quais salienta-se a construção dos altares da capela de S. Francisco de Paula d'esta capital, tendo-a montado à Praia de Ouro Preto com excelente maquinismo e pessoal habilitado, acha-se em condições de prontificar toda e qualquer encomenda com que o honre a confiança pública, tanto para a capital como para fora, como sejam: lambrequins e outros recortes para chalets, altares, trabalhos de torno, mobílias de gosto moderno e apurado, etc. Os altares podem ser construídos na oficina para serem colocados em capelas de qualquer ponto do Estado, encarregando-se d'esse trabalho algum dos oficiais da marcenaria, competentemente habilitado. Modicidade de preços, zelo e presteza".

O chalé da Rua do Carmo (na placa, lê-se rua Coronel Alves) pertence ao engenheiro de minas e empresário Eduardo Drummond. Acolhendo por muitos anos o tradicional Café e Restaurante Deguste no seu antigo e vasto porão, é um edifício de grande porte, erguido no final do Império sobre construção do século XVIII, cujas estruturas são ainda de Miguel Antônio Tregellas (Praia de Ouro Preto) visíveis. Nos fundos do casarão, os terraços ou patamares que descem até a rua Xavier da Veiga são típicos da urbanização original de Ouro Preto. Há um terceiro pavimento na forma típica de "chalet", coroando o telhado. Deve ter havido lambrequim nos beirais, conforme facilmente se constata. As vergas triangulares conferem ritmo especial às fachadas. Está a edificação entre as mais significativas do período que se encerra com a mudança da capital para Belo Horizonte (12 de dezembro de 1897). A velha cidade ingressa, então, em fase longa de estagnação, que contribui para que se preservem suas admiráveis características históricas. As construções em estilo "moderno", com platibanda na fachada principal, à maneira da arquitetura da primeira Belo Horizonte, aparecem, aqui e ali, no início do século XX. Lembre-se a casa do senador Alfredo Baeta, hoje sede dos Correios. Mas, em 1931, decreto do prefeito João Veloso vem impedir "a mudança do ʻfacies' colonial da cidade". Em 1933, o presidente Getúlio Vargas declara Ouro Preto monumento nacional. Em 1938, a cidade é tombada pelo IPHAN, criado dois anos antes. A Unesco, em 1980, inscreve-a no patrimônio cultural da humanidade, como primeiro bem brasileiro a se tornar monumento mundial.

Ângelo Oswaldo de Araújo Santos é professor da PUC-Minas, escritor, jornalista e curador de arte. Prefeito de Ouro Preto, presidente do IPHAN e secretário de Estado da Cultura de Minas Gerais.